Midas (Μíδας), famoso rei da Frígia, se tornou o herói de vários mitos de cunho popular. Certa feita, o poderoso monarca encontrou o velho Sileno em sono profundo, após encharcar-se, como de hábito, com o doce licor de Baco. Esperou pacientemente que o pai dos sátiros acordasse e pediu-lhe que lhe falasse acerca da sabedoria. O velho não se fez rogado e narrou-lhe ironicamente uma espécia de parábola.
Havia duas cidades, disse o ancião, situadas bem longe, nas extremidades do mundo. A primeira chamava-se Εὐσέβεια (Eusébeia), Eusébia, “respeitadora dos deuses, a piedosa” e a segunda Μάχιμος (Mákhimos), Máquimo, “a belicosa, a sanguinária”. Eram dois reinos, ambos muito ricos. Possuíam tanto ouro e prata, que esses metais preciosos tinham para eles o mesmo valor que o ferro. Os habitantes da primeira viviam felizes como os da Idade de Ouro. Sua morte assemelhava-se a um sono tranquilo; deixavam esta vida sorrindo. Os residentes na segunda passavam a vida que, por sinal, lhe era sempre curta, em lutas cruentas, matando-se uns aos outros.
Certa feita, tanto os “eusébios” quanto os “máquimos” resolveram fazer uma visita a nosso mundo. Cruzaram o Oceano imenso e chegaram à região dos Hiperbóreos, considerados os mais afortunados dos mortais. Ficaram tão impressionados com a miséria lá reinante, sobretudo entre o povo, que resolveram encurtar a viagem e regressaram a seus reinos.
O rei da Frígia, despótico e cruel, cuja corte nadava em ouro, mas cuja população vegetava na miséria, certamente compreendeu a mensagem de Sileno.
Ainda sobre Midas querer usufruir da sabedoria de Sileno:
Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de Dionísio. Quando, por fim, ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem. Obstinado e imóvel, o daimon calava-se; até que, forçado pelo rei, prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:
– Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer.” O nascimento da tragédia, §3.
Há uma outra versão do encontro entre o imortal sequaz de Dioniso e o rico e ponderoso senhor dos frígios. Sileno, que se embebedara, afastou-se do cortejo de Baco e dormiu numa das montanhas da Frígia. Encontrado por pastores, que não o reconheceram, prenderam-no e conduziram-no ao rei. Midas, que outrora se iniciara nos mistérios dionisíacos, viu logo de quem se tratava. Mandou libertá-lo e deu-lhe uma acolhida digna de um deus.
Depois, partiu em companhia do sátiro em busca do deus do vinho. Dioniso, agradecido pelas gentilezas e honrarias prestadas a seu servidor inseparável, prometeu a Midas atender-lhe prontamente a um pedido, fosse ele qual fosse. O rei solicitou que se transformasse em ouro tudo quanto tocasse. O deus satisfez-lhe o desejo e as coisas correram maravilhosamente bem até a hora do almoço, porquanto o pão que o rei levara à boca tornou-se um pedaço de ouro e o vinho transformou-se em metal. Esfaimado e arrependido de sua insaciável cobiça, suplicou ao filho de Zeus que lhe retirasse um dom tão funesto. Dioniso ordenou-lhe lavar a cabeça e as mãos na fonte de Pactolo. Isso feito, o poder transformador, “o toque dourado” de Midas, desapareceu, mas as águas da fonte ficaram para sempre cheias de filetes de ouro.
Plutarco relata uma segunda versão do mito, semelhante, em parte, a esta última. O rei visitava com grande comitiva uma província distante de seu reino, quando se perdeu no deserto. Não tendo encontrado um único oásis, onde houvesse água, Midas e seus companheiros estariam condenados a morrer de sede, não fora a pronta intervenção de Gaia, que fez brotar no deserto uma fonte aparentemente de água cristalina. Todos correram para o manancial, mas, em lugar de líquido, a nascente emanava torrentes de ouro. Midas apelou para Dioniso, que transformou o metal em água pura e fresca. O monarca deu-lhe o nome de Fonte de Midas.
O rei da Frígia está ligado ainda a um ângulo do mito de Apolo. Um dia em que o deus tocava flauta no monte Tmolo, na Lídia, foi desafiado pelo presunçoso Mársias. É que o sátiro, tendo recolhido uma flauta atirada fora por Atena, adquiriu, à força de exercícios ininterruptos, extrema habilidade e virtuosidade. Os juízes de tão magna contenda foram o próprio monte Tmolo, as Musas e Midas. O deus foi declarado vencedor, mas o rei se pronunciou por Mársias. Apolo o puniu, fazendo com que nascessem nele orelhas de burro. No tocante ao vencido, foi o mesmo amarrado a um tronco e escorchado vido.
Midas, envergonhado, camuflava as orelhas com a tiara e somente seu cabeleireiro estava a par do segredo. Se o revelasse, seria morto. Não podendo mais suportar o peso de tamanha responsabilidade e as ameaças constantes do rei, abriu um buraco no solo, junto a um charco, e confiou à mãe Terra que o soberano da Frígia possuía orelhas anormais. Caniços que vegetavam à margem do brejo, quando agitados pelos ventos, murmuravam em coro: “Midas, o rei Midas, possui orelhas de burro”.
Referências:
BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico v.2. Petrópolis: Vozes, 2008.
NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia. Trad. GUINSBURG, J. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.